Por Maurício Gonçalves, repórter da Gazeta de Alagoas (matéria publicada na edição de 24.08.14 - Especial sobre a saúde em Alagoas)
Foto: Marcelo Albuquerque/Gazeta de Alagoas |
A grade do minipronto-socorro do Benedito Bentes separa dois mundos, entre a vida e a prisão do SUS. Do lado de cá, somos nós, fora do jornal. Do lado de lá, os olhos do paciente exausto refletem o sofrimento de anos de luta contra a doença mal tratada que mutila aos poucos. Vão-se os dedos, os pés, as pernas e o paciente vai desaparecendo. Ficam os anéis da corrupção, negligência, burocracia e de tudo o que não presta na rede pública de Alagoas. O destino pode ser a cadeira ao lado, vazia, onde o enfermo invisível também sumiu, perdeu-se nas estatísticas e virou etiqueta de saco cadavérico.
Encostados na parede, ao fundo, os usuários no banco de espera são vítimas ansiosas para denunciar crimes. Parecem não se identificar “temendo represálias”. A grade serve de venda para o homem de camisa vermelha, o rapaz de cabeça abaixada não é reconhecido. Eles vão acusar ladrões da saúde alheia, como a hipertensão, vermes variados e a diabetes que deteriora membros do corpo. São males fáceis de identificar (quando se consegue fazer exames), os bandidos são reconhecidos, mas o sistema é bruto e dá as ordens: “o doente que sofra atrás do xadrez da impunidade”.
Delitos corriqueiros, patologias simples, facilmente preveníveis, tomam corpo e se transformam em doenças graves, crimes hediondos. Com o abandono da atenção à saúde básica, uma lombriga que não se evita por falta de agentes de saúde da família, nem é combatida no posto da comunidade, pode virar uma complicação intestinal grave. Sem atendimento ambulatorial nem hospitalar no interior, o caso piora e vem para a vala comum do HGE, em Maceió, mas retorna ao município de origem e agora depende de uma vaga no temido Cora (Complexo Regulador Assistencial). É um balaio de estupidez que custa muito mais caro aos cofres públicos.
Não existe muita lógica nisso, mas para tentar entender um pouco como funciona o SUS em Alagoas, a Gazeta acionou uma equipe de repórteres para percorrer unidades de saúde em vários pontos do estado, relatar a rotina sofrida dos usuários, conversar com profissionais, agentes de fiscalização e gestores que atuam na área. O resultado dessa investigação jornalística é assustador, e começou a ser revelado num caderno especial, publicado domingo passado.
Na edição de hoje, o caderno de Saúde está separado em quatro blocos de assuntos para guiar os leitores neste mergulho ao poço sem fundo em que se tornou a saúde pública. O primeiro bloco traz matérias sobre hospitais e UPAs (Unidades de Pronto Atendimento). O segundo trata da problemática saúde básica. No bloco 3, o foco são as denúncias e personagens. Já o quarto bloco traz entrevistas reveladoras com o tema, debates e análises.
Ao ingressar em cada um desses blocos, o leitor vai perceber que os males são enganchados uns aos outros, como uma grande teia de aranha com insetos presos debatendo-se em vão. Os pacientes da foto acima esperam para entrar em um minipronto-socorro que sempre está lotado, enquanto a UPA do mesmo bairro, construída em área de 1.220 m², continua fechada, sem previsão para inaugurar por falta de profissionais e equipamentos.
A estrutura metálica da UPA de Maragogi enferruja próximo à beira-mar, com equipamentos abandonados, sem nunca ter realizado um atendimento. Com ordem de serviço assinada em 2010 e orçamento de R$ 2,4 milhões, a obra só foi concluída este ano, mas segue sem a menor previsão de quando abrirá as portas. Sem UPA ou hospital, as pessoas se espremem durante horas para ter atendimento em uma unidade que nem aparelho de raio X tem.
Qual besouros e moscas, os pobres alagoanos não conseguem se desgarrar de certos fios pegajosos. A rede do SUS é uma armadilha, do Sertão ao Litoral Norte do Estado. Em Maragogi, a saga da usuária Elane Barros para sobreviver começou com uma dor estranha no abdômen. Sem posto médico no Sítio Ponta de Mangue, ela foi buscar atendimento na Unidade de Saúde da Família do povoado Peroba. Foi encaminhada para a unidade mista da cidade (uma espécie de ambulatório misturado com hospital). Já com suspeita de cálculo renal, esperou 15 dias pelos exames e contraiu infecção urinária. Assustada, só teve um jeito para escapar da teia: saiu de Alagoas rumo ao Hospital de Barreiros, em Pernambuco.
Para a dona de casa Neuza Teodósio, a escapatória é mais complicada. O esgoto do Hospital Clodolfo Rodrigues, em Santana do Ipanema, despeja dentro da sua residência, ao ponto de infiltrar no piso e deixar as paredes úmidas. A contaminação desce dos leitos, banheiros, cozinha e lavanderia do hospital direto para a pele, os brônquios e o aparelho digestivo da vizinha infeliz. Assim como a sertaneja, quem mais habita abaixo do ralo do SUS?
Encostados na parede, ao fundo, os usuários no banco de espera são vítimas ansiosas para denunciar crimes. Parecem não se identificar “temendo represálias”. A grade serve de venda para o homem de camisa vermelha, o rapaz de cabeça abaixada não é reconhecido. Eles vão acusar ladrões da saúde alheia, como a hipertensão, vermes variados e a diabetes que deteriora membros do corpo. São males fáceis de identificar (quando se consegue fazer exames), os bandidos são reconhecidos, mas o sistema é bruto e dá as ordens: “o doente que sofra atrás do xadrez da impunidade”.
Delitos corriqueiros, patologias simples, facilmente preveníveis, tomam corpo e se transformam em doenças graves, crimes hediondos. Com o abandono da atenção à saúde básica, uma lombriga que não se evita por falta de agentes de saúde da família, nem é combatida no posto da comunidade, pode virar uma complicação intestinal grave. Sem atendimento ambulatorial nem hospitalar no interior, o caso piora e vem para a vala comum do HGE, em Maceió, mas retorna ao município de origem e agora depende de uma vaga no temido Cora (Complexo Regulador Assistencial). É um balaio de estupidez que custa muito mais caro aos cofres públicos.
Não existe muita lógica nisso, mas para tentar entender um pouco como funciona o SUS em Alagoas, a Gazeta acionou uma equipe de repórteres para percorrer unidades de saúde em vários pontos do estado, relatar a rotina sofrida dos usuários, conversar com profissionais, agentes de fiscalização e gestores que atuam na área. O resultado dessa investigação jornalística é assustador, e começou a ser revelado num caderno especial, publicado domingo passado.
Na edição de hoje, o caderno de Saúde está separado em quatro blocos de assuntos para guiar os leitores neste mergulho ao poço sem fundo em que se tornou a saúde pública. O primeiro bloco traz matérias sobre hospitais e UPAs (Unidades de Pronto Atendimento). O segundo trata da problemática saúde básica. No bloco 3, o foco são as denúncias e personagens. Já o quarto bloco traz entrevistas reveladoras com o tema, debates e análises.
Ao ingressar em cada um desses blocos, o leitor vai perceber que os males são enganchados uns aos outros, como uma grande teia de aranha com insetos presos debatendo-se em vão. Os pacientes da foto acima esperam para entrar em um minipronto-socorro que sempre está lotado, enquanto a UPA do mesmo bairro, construída em área de 1.220 m², continua fechada, sem previsão para inaugurar por falta de profissionais e equipamentos.
A estrutura metálica da UPA de Maragogi enferruja próximo à beira-mar, com equipamentos abandonados, sem nunca ter realizado um atendimento. Com ordem de serviço assinada em 2010 e orçamento de R$ 2,4 milhões, a obra só foi concluída este ano, mas segue sem a menor previsão de quando abrirá as portas. Sem UPA ou hospital, as pessoas se espremem durante horas para ter atendimento em uma unidade que nem aparelho de raio X tem.
Qual besouros e moscas, os pobres alagoanos não conseguem se desgarrar de certos fios pegajosos. A rede do SUS é uma armadilha, do Sertão ao Litoral Norte do Estado. Em Maragogi, a saga da usuária Elane Barros para sobreviver começou com uma dor estranha no abdômen. Sem posto médico no Sítio Ponta de Mangue, ela foi buscar atendimento na Unidade de Saúde da Família do povoado Peroba. Foi encaminhada para a unidade mista da cidade (uma espécie de ambulatório misturado com hospital). Já com suspeita de cálculo renal, esperou 15 dias pelos exames e contraiu infecção urinária. Assustada, só teve um jeito para escapar da teia: saiu de Alagoas rumo ao Hospital de Barreiros, em Pernambuco.
Para a dona de casa Neuza Teodósio, a escapatória é mais complicada. O esgoto do Hospital Clodolfo Rodrigues, em Santana do Ipanema, despeja dentro da sua residência, ao ponto de infiltrar no piso e deixar as paredes úmidas. A contaminação desce dos leitos, banheiros, cozinha e lavanderia do hospital direto para a pele, os brônquios e o aparelho digestivo da vizinha infeliz. Assim como a sertaneja, quem mais habita abaixo do ralo do SUS?
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