terça-feira, 2 de setembro de 2014

‘Nenhum posto deveria funcionar’

Micheline Tenório destaca que, em Alagoas, o MP encontra sérias dificuldades para atuar na defesa da ordem jurídica e fiscalizar o cumprimento da lei

Por Thiago Gomes, repórter da Gazeta de Alagoas (matéria publicada na edição de 24.08.14 - Especial sobre a saúde em Alagoas)


Maceió – O provérbio popular exclama: “A voz do povo é a voz de Deus!”. E a voz desse povo grita nos corredores do Ministério Público Estadual (MPE). O órgão faz questão de escancarar o abismo em que se encontra a saúde pública em Alagoas. A promotora de Justiça de Defesa da Saúde Pública, Micheline Tenório, destaca que nenhuma das unidades de saúde do Estado deveria estar aberta. Elas têm problemas graves de estrutura, faltam insumos e recursos humanos, enquanto sobra má vontade dos poucos profissionais que atuam nos locais.

Os pacientes choram, agonizam, morrem e muitos nem chegam a ser ouvidos por um médico. Estado e municípios se igualam quando o assunto é precariedade. Ações foram propostas pelo MPE, responsabilizando os gestores, prevendo multas e obrigando o poder público a reestruturar, imediatamente, postos, hospitais e ambulatórios. O que foi feito? Quase nada – ou nada, conforme revela a promotora. Aqui em Alagoas, o Ministério Público encontra dificuldades seriíssimas para atuar na defesa da ordem jurídica e fiscalizar o cumprimento da lei.

O promotor Sidrack Nascimento, da Promotoria da Fazenda Pública Estadual, informa que há três inquéritos civis em curso para apurar a falta do cumprimento de normas e acordos firmados entre o MPE e o Estado. Todos são relativos ao alto índice de profissionais terceirizados prestando serviço nas unidades. Em 2010, segundo o promotor, foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que fosse aberto processo seletivo de contratação de profissionais da saúde. “Demos um prazo de até dois anos para que o Estado providenciasse o concurso público, o que ainda não foi feito”, ressaltou.

Na Terra dos Marechais, quem dita as regras são os “fora da lei”. Em entrevista à Gazeta, Micheline Tenório fala sobre o caos na saúde pública e aponta os problemas detectados em Alagoas.

Gazeta. Quais ações coletivas o MP ingressou, nos últimos anos, após investigação iniciada para confirmar supostas irregularidades?

Micheline Tenório. Direcionamos, do ano passado até agora, ações para reestruturar as Unidades de Pronto Atendimento (ambulatórios 24 horas – sob gestão do Estado), judicializamos uma para a assistência farmacêutica do Estado, outras direcionadas para a melhoria na estrutura dos postos de saúde geridos pelo município de Maceió, mais outra para o cumprimento da carga horária dos profissionais da saúde sob a responsabilidade do Estado. Também impetramos uma para que as gestantes tenham atendimento adequado, na Santa Mônica e no Hospital Universitário, permitindo que, se houver casos de superlotação, elas tenham assistência nas unidades filantrópicas e públicas, ou até em um hospital particular financiado pelo SUS. Estávamos, também, aguardando uma visita técnica do Denasus [Departamento Nacional de Auditoria do SUS], que solicitamos.

Quem o MP responsabiliza e quais as punições solicitadas à Justiça?

Todas as ações civis públicas são com obrigação de fazer. Algumas já têm liminar concedida, outras ainda estamos aguardando que o magistrado aprecie. Pedimos a imediata reestruturação das unidades onde foram detectados problemas graves e situação precária, além de multa pessoal e suspensão da propaganda institucional. No entendimento do Ministério Público, o gestor só pode dizer que não tem dinheiro quando a propaganda estiver zerada. Solicitamos, ainda, que a verba dessa publicidade seja revertida para a saúde e que os secretários, o prefeito e o governador sejam responsabilizados diretamente.

Qual o cenário encontrado pelo Denasus na vistoria às unidades de Alagoas?

Os auditores constataram que as unidades de saúde não oferecem estrutura nenhuma de trabalho e de atendimento. O cenário é de total desestruturação, com falta de insumos, medicamentos, equipamentos, descumprimento de cargas horárias, principalmente dos médicos, carência de planejamento para que seja oferecida uma prestação de serviço com qualidade. Todos os ambulatórios têm problemas idênticos. O sistema do Ministério da Saúde, o CNES [Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde], estava desatualizado. O que consta lá não é o que se registra realmente em termos de equipes de saúde (enfermagem, médicos e técnicos). Nas farmácias, faltam medicamentos para atendimento nos ambulatórios. Faltam insumos (materiais para curativos e linha cirúrgica), a estrutura é muito precária, o mobiliário está defasado e enferrujado, o que deixa o ambiente inadequado para receber os pacientes do SUS.

E quais as principais reclamações dos usuários que chegam a estas unidades de saúde?

Eles não conseguem atendimento com facilidade. Há demora, muitos nem chegam a ser atendidos, encontram o portão fechado. Percebemos também a falta de médicos. Todos os ambulatórios, por exemplo, que estão sob a gerência do Estado, antecedem o atendimento no Hospital Geral do Estado, já que fazem o serviço de média complexidade. Eles existem justamente para evitar a superlotação do HGE. Os postos do município possuem o mesmo cenário. Falta estrutura de recursos humanos, ou por falta de efetivo ou por descumprimento da carga horária. Temos informações, junto a usuários, que os médicos sequer elevam o pescoço para olhar nos olhos dos pacientes. Além da falta de estrutura, o profissional não oferece bom atendimento.

É possível coibir o descumprimento da carga horária?

A facilidade é grande porque não existe o ponto digital. Os funcionários só assinam uma folha – e quando assinam. Há uma recomendação do Ministério Público para que o Estado e a Prefeitura de Maceió implantem o ponto eletrônico. Já está minutada uma ação para que seja exigido especificamente esse ponto. Neste processo, há uma solicitação para que se adote o ponto biométrico e a ação vai servir para o cumprimento da carga horária.

O que o MP ainda constata nas visitas técnicas?

O Ministério Público se deparou com várias situações diferentes. Havia postos de saúde que estavam funcionando com duas equipes do Programa Saúde da Família (PSF), onde só existia, no local, um consultório. Como o médico poderia atuar para atender a comunidade dividindo espaço com outra equipes? Há carência de consultórios para enfermagem, para exame de pré-natal, estrutura física, de recursos humanos. Os CAPSs [Centro de Atenção Psicossocial] não obedecem às normas de segurança alimentar dos pacientes, respeitando as particularidades.

Com as auditorias, inspeções, investigações e as ações civis públicas, qual o retorno positivo que o MP obteve indicando mudanças no quadro atual da saúde pública?

Retorno mínimo. Do mesmo jeito que o MP maneja as ações, o Executivo também maneja os recursos, que acabam procrastinando as possíveis melhorias. Até agora, não nos deparamos com qualquer investimento que mude a realidade dessas unidades. As melhorias que ocorreram ainda são muito pequenas. Vale destacar que firmamos um Termo de Ajustamento de Conduta com a Secretaria Municipal de Saúde para trazer os servidores à legalidade. Neste caso, acompanhou o nosso trabalho o MP de Contas e, anteriormente, também o Ministério Público do Trabalho. O esforço foi para garantir o funcionamento do SUS dentro da legalidade. O concurso público aconteceu e, hoje, mais de 800 pessoas ingressaram no quadro efetivo.

O que o Ministério Público sabe sobre o sistema de regulação de consultas em Alagoas?

O sistema substituiu os papéis coloridos que eram para marcar exames. É um sistema do Ministério da Saúde e houve uma centralização desse agendamento. O problema é que, para que ele funcione corretamente, tem que haver conectividade adequada, o que não acontece em todas as unidades. E muitas nem têm o link. Os papéis eram concentrados nos postos e a direção distribuía. Havia a ingerência político-partidária. Recebemos a informação, mas ainda não tivemos dados reais, que provem que isso existia ou ainda existe. O que ficamos sabendo é que algumas unidades de saúde são loteadas para políticos. A direção administrativa desses postos ainda é indicada por políticos. E o Ministério Público tenta confirmar e coibir as ilegalidades. As unidades têm de ser geridas por técnicos que sabem da área e não por pessoas que participaram da campanha de A ou B.

Diante do quadro caótico encontrado, quais unidades de saúde poderiam continuar funcionando em Alagoas?

Se fosse para agir no rigor do que prevê a Vigilância Sanitária, nenhuma das unidades de saúde de Alagoas teria condições de permanecer aberta. A lei exige estrutura adequada, mas como ficaria a população se essas exigências fossem mesmo cobradas? Há um mal maior e um menor. Nesse caso, não tem um mal menor. Tem que fazer com que o serviço seja oferecido de acordo com as regras, mas a população não pode ficar desassistida, por outro lado. Os postos do município de Maceió precisam de uma reforma urgente e os ambulatórios do Estado precisam do cumprimento de carga horária, disponibilização do profissional 24 horas e de uma melhor estrutura física dos ambulatórios.

Quanto à Santa Mônica, o MP tem acompanhado as reformas que estão completando um ano?

Tem ação para as parturientes de alto risco que não encontram atendimento por falta de leitos. Elas não podem ficar nos corredores. A Justiça já sentenciou. Sobre a reforma, há um procedimento administrativo instaurado na 26ª Promotoria para acompanhar. Conosco estão, ainda, a Defensoria Pública e o Ministério Público Federal (MPF). Em 2006, impetramos uma ação civil pública, com o MPF, para que a situação fosse resolvida, e houve uma integralização da rede de assistência. Foi concedida a decisão em primeiro grau, mas o TRF da 5ª Região derrubou e alegou que era ato discricionário e que não era para o Ministério Público estar discutindo esse assunto em juízo. Houve atraso por falta de pagamento, por falta de planejamento, por falta de estrutura para transferir o atendimento a outra unidade, enfim, demorou muito para sair, de fato, e o que é pior, não acredito que, em setembro, a reforma sej concluída, como o Estado prevê.

Como está a saúde no interior do Estado sob a ótica do Ministério Público?

Foi formado o Grupo de Trabalho da Saúde. Estamos, inicialmente, trabalhando com dez municípios que exercem influência em suas regiões. Encaminhamos questionários para os 102 municípios e estamos aguardando as respostas de alguns. Há localidades que chamam mais atenção. Nelas, há sérias dificuldades de urgência e emergências com as UPAs e alguns hospitais que prestavam este serviço. Além disso, pequenos hospitais com menos de vinte leitos não estão mais recebendo recursos federais, conforme as novas regras do Ministério da Saúde. Muitos estão precarizados pela falta de planejamento.

A contratualização dos hospitais filantrópicos é uma alternativa coerente e legal para desafogar o atendimento pelo SUS nas unidades públicas?

É só uma formalização do que já existe há muito tempo. Auditoria do Denasus, ocorrida há muito tempo, identificou que apenas 13% dos serviços de saúde realizados por prestadores de serviços eram contratualizados ou conveniados. Era tudo informal. As relações de consumo deveriam chegar aos trâmites jurídicos. Pelo que temos conhecimento, o poder público caminha para aumentar essa oferta e, até agora, não sabemos de supostas irregularidades na contratualização.

Na sua opinião, quais os principais problemas do SUS em Alagoas?

O desfinanciamento do SUS, por parte da União, aos municípios. A desvinculação das receitas da União causou problemas sérios para as prefeituras. A municipalização do SUS é bonita no papel. A influência política é muito forte, é um setor nevrálgico, precisa ter pessoas que saibam o que estão fazendo. Há, falta de planejamento, gestão e de fiscalização.

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