Por Patrícia Bastos, repórter da Gazeta de Alagoas (matéria publicada na edição de 17.08.14 - Especial sobre a saúde em Alagoas)
Traipu – A casa é de taipa e o banheiro é um buraco no chão, isolado do quintal por pedaços de espuma velha. Só isso já seria suficiente para infectar com várias doenças os moradores dessa residência, localizada no sítio Belo Horizonte, zona rural de Traipu. Mas quatro das seis pessoas que moram nesse ambiente sofrem de um problema muito mais grave.
Ronilson Ferreira dos Santos, 17; José Cícero, 14; David, 12; e José Gabriel, 11, nasceram saudáveis, de acordo com a mãe deles, a desempregada Benedita Ferreira dos Santos. Como toda criança que cresce na zona rural, eles gostavam de passar o tempo livre, correndo pelo mato, explorando a região, além de, claro, jogar futebol. Hoje, essas brincadeiras ficaram para trás e eles passam o dia inteiro sentados no sofá ou no chão de terra batida, dentro de casa. Nenhum dos quatro pode mais andar e eles não conseguem entender o porquê.
Estes garotos são o retrato da ineficácia da saúde pública. O primeiro a ficar doente foi Ronilson, conhecido também como “Roninho”. Por volta de 2002, quando ele tinha cinco anos de idade, começou a sentir dificuldade para caminhar. De lá para cá, Benedita já perdeu as contas de quantos médicos foram consultados e quantos exames foram feitos nestes mais de 10 anos, seja com Roninho ou com seus outros filhos, que desenvolveram o mesmo mal nos anos seguintes. Hoje, 12 anos depois, eles sequer têm o diagnóstico da doença.
O mais perto que chega disso é um laudo escrito à mão por uma médica, que Benedita usou para dar entrada no processo de aposentadoria de Roninho e José Cícero. “A doutora acha que o nome da doença é esse que está escrito aí, mas disse que é preciso fazer mais exames para descobrir a causa”, afirmou Benedita Ferreira, revelando que não sabe ler. No papel está escrito tetraplegia progressiva.
“Ela disse que é uma doença degenerativa, não entendo direito o que significa isso, e genética também, porque tenho um irmão que morreu que tinha o mesmo problema. Mas eu acho que não é, porque eu tenho oito filhos, além dos quatro que são doentes. Tem o César, que mora comigo e tem 16 anos, e outro filho que passa mais tempo na casa de parentes, além de uma menina que mora em São Paulo. E nenhum deles tem essa mesma doença”, afirmou.
Quando Roninho tinha cinco anos passou a ter um andar desequilibrado, sem conseguir pisar com os calcanhares e ficar com a coluna ereta. “Ele era sadio e, de um dia para o outro, começou a andar na ponta dos pés e como se fosse cair. Não conseguia mais pisar direito no chão. Comecei a levar para os médicos, ainda nesta época, mas não descobriam o que ele tinha. Primeiro foi no posto de saúde, depois para outro médico que eles encaminharam, daí fizeram exames. Já levei Roninho e os outros meninos para se consultar em Arapiraca e até em Maceió, mas ninguém disse o que eles têm”, declarou.
Benedita Ferreira cria sozinha cinco dos seus filhos. Além dos quatro deficientes, também mora com ela César Ferreira dos Santos, que tem 16 anos, e ajuda no cuidado com os irmãos. Ela não trabalha e a família sobrevive da renda proveniente da aposentadoria de Roninho e José Cícero. Algumas semanas atrás, depois que uma reportagem sobre eles foi veiculada na TV, os garotos receberam doações de cadeiras de roda.
Quando a Gazeta esteve com eles, as doações ainda não haviam acontecido e Benedita Ferreira dizia estar desanimada. “Às vezes aparece exames para eles fazerem e eu fico pensando se devia levar ou não. Mas acabo sempre levando, porque fico muito triste quando vejo a situação desses meninos, enquanto qualquer coisa que melhore pelo menos um pouco vale a pena”, conta, lembrando que a médica do posto de saúde de Girau do Ponciano providenciou um exame para Roninho em Maceió, para as próximas semanas.
Apesar do acompanhamento em Girau, onde a família morava até o começo de junho, a diretora do posto de saúde do sítio Belo Horizonte – que estava fechado no dia em que a reportagem esteve com a família – Josiva Lima de Souza, afirmou que o acompanhamento médico dos garotos está garantido. “Desde quando Roninho começou a apresentar os primeiros sintomas, providenciamos o que foi necessário para melhorar as condições de vida dele. A gente levava os irmãos até o Centro de Reabilitação, em Arapiraca, onde eram acompanhados por profissionais de várias áreas. Esse acompanhamento só foi interrompido porque eles foram embora, mas podem ser retomados a partir de agora”, afirmou.
A mãe dos garotos afirma que, alguns anos atrás, mudou-se com os meninos para o município de Coruripe e, depois, foram morar em Girau do Ponciano, mas acabaram voltando para a casa de taipa no sítio Belo Horizonte, porque não havia condições de arcar com o aluguel.
SONHOS PARALISADOS
Apesar do confinamento dentro do casebre imposto pela paralisia, os garotos – na maior parte do tempo – são alegres e comunicativos. A principal diversão deles, atualmente, é a televisão, um “luxo” recente, já que até um mês atrás não havia sequer energia elétrica na casa deles.
“Como não podiam sair de casa, durante a Copa, pediam para o vizinho deixar o som da televisão dele bem alto e ficavam escutando de casa”, conta César Ferreira, fiel escudeiro dos irmãos.
A energia chegou depois que os conselheiros tutelares de Traipu fizeram uma vaquinha e compraram os materiais necessários para ligar a casa à rede elétrica. “Eles gostam muito de futebol, mas não podem sair para brincar. A televisão pelo menos ajuda a passar o tempo”, afirmou o conselheiro Jonatas Pedro da Silva Santos. Ele fez um apelo pelos garotos, que já chegaram a mandar cartas para programas de televisão, com o objetivo de conseguir uma reforma na casa onde moram.
“Eles são uma família carente de tudo. Da moradia à assistência médica. Se algum médico voluntário, faculdade ou acadêmico de Medicina pudesse ajudar, para descobrir qual doença eles realmente têm e definir um tratamento para que eles, se não melhorarem, pelo menos a doença não evolua ainda mais”, apelou o conselheiro.
A rotina dos garotos é sofrida. Eles dormem em colchões que foram doados para a família depois que Benedita Ferreira fez um apelo em um programa de rádio. Pela manhã, ela e César colocam os meninos no sofá e tiram os colchões que ficaram espalhados pela casa. As necessidades fisiológicas são feitas em uma garrafa ou no chão mesmo, em cima de uma sacola plástica, que depois é jogada fora.
Apenas David e José Gabriel frequentam a escola, apesar de spo existir uma a menos de cem metros da casa deles. “Eu queria voltar a estudar, mas agora estou muito pesado e nem minha mãe nem meu irmão conseguem me carregar até lá”, conta Roninho. Outro sonho dele é voltar a caminhar. “Se Deus quiser, isso um dia vai acontecer”, afirma.
Como passam os dias inteiros em casa, a chegada de qualquer pessoa de fora é motivo de animação, embora José Cícero e José Gabriel não gostarem de falar sobre a doença que sofrem. Faz menos de um ano que eles pararam de andar.
“As pernas vão ficando fracas, cada vez mais fracas, até não conseguirem mais ficar de pé”, explica Roninho pelos irmãos.
César Ferreira, o único dos filhos que mora com Benedita e consegue andar, conta que passou anos com medo de ter a mesma doença que os irmãos. Agora, com 16 anos, e aliviado por estar livre da paralisia, é quem fica com os irmãos a maior parte do tempo. Quando indagado se tinha um sonho na vida, respondeu prontamente. “Queria conhecer o Neymar, ou melhor, queria não. A melhor coisa de todas seria poder jogar bola com meus irmãos”, declarou.